domingo, 31 de outubro de 2010

Mar, a última fronteira

Em muitos aspectos o mar permanece um grande mistério, mas os oceanos podem guardar a resposta para muitos problemas da Humanidade, do combate a doenças como o cancro às necessidades energéticas do futuro. "É preciso ir ver", já lembrava Cousteau. 

 

Basta mergulharmos a algumas dezenas de metros de profundidade e o mundo como o conhecemos muda. À medida que descemos, a luz desaparece e o ambiente torna-se cada vez mais inóspito. A pressão aumenta nos olhos, nos ouvidos, por todo o corpo, e depressa compreendemos que somos extraterrestres em grande parte do nosso planeta. Porque o mundo como o conhecemos é apenas uma pequena parte deste imenso mundo a que chamamos Terra. O mar representa 90 por cento do volume disponível para a vida no planeta. Em boa verdade, a Terra é muito mais água que solo firme. E, contudo, muito do que se esconde nas profundezas dos oceanos é ainda desconhecido para o Homem. É Mare Incognitum, como lhe chamavam os romanos, reclamando o velho lema de Jacques Cousteau, o mais célebre dos oceanógrafos: "Il faut aller voir" ("É preciso ir ver").
Mas, afinal, o que se esconde lá no fundo, na eterna escuridão? Que tipos de vida habitam os oceanos? Quantas espécies existem? E onde vivem? Estas eram perguntas que, há uma década, não tinham ainda respostas definitivas. Talvez inspirados nas "Vinte Mil Léguas Submarinas" de Verne, 2700 cientistas de 80 nações reuniram-se em 2000 para realizar o Censo da Vida Marinha (CoML na sigla em Inglês), o primeiro inventário global da vida nos oceanos. Ao longo dos últimos dez anos, realizaram mais de 540 expedições nos quatro cantos do mundo, por águas conhecidas e outras poucas vezes navegadas, e catalogaram o que se sabe sobre a biodiversidade marinha.
Os resultados da aventura, apresentados no início do mês, trouxeram uma nova luz sobre a vida nos oceanos. De entre os milhões de espécimes recolhidos, foram encontradas mais de 6000 potenciais novas espécies, 1200 das quais foram já formalmente descritas. Revista a matéria, os cientistas calcularam serem hoje conhecidas cerca de 250 mil espécies marinhas (20 mil mais do que as estimadas há uma década), mas admitem que o número total possa atingir o milhão, excluindo os micróbios.
Apesar do exaustivo estudo representar um salto significativo face ao conhecimento existente há uma década, o mar continua, em muitos aspectos, um grande mistério. Para mais de um quinto do volume do oceano, as bases de dados do Censo não têm qualquer registo e em muitas áreas as informações são ainda escassas. "Existem muitas zonas por explorar, que nunca foram estudadas nem observadas directamente. As áreas onde foram feitas recolhas de amostras correspondem a uma parte ínfima dos oceanos. O mar é um mundo imenso, em certa medida um pouco invisível. Não podemos apontar-lhe um satélite e estudá-lo", explica Ricardo Serrão Santos, director do Departamento de Oceanografia e Pescas (DOP) da Universidade dos Açores, que integrou o comité científico coordenador do Mar-Eco, um dos programas de investigação do CoML.
O Censo demonstrou também que o nosso conhecimento é inversamente proporcional ao tamanho: sabemos mais sobre os grandes organismos do que sabemos sobre os mais pequenos. E, contudo, a maioria da vida nos mares é microbiana: os microrganismos representam cerca de 50 a 90 por cento da biomassa marinha, calculando-se que existam uns mil milhões de tipos de micróbios diferentes. São "a maioria escondida", nas palavras de Ian Poiner, um dos responsáveis pelo Censo, mas provocam fenómenos surpreendentes. Junto à placa continental do Chile, por exemplo, a profundidades com quantidades ínfimas de oxigénio, os investigadores descobriram um espetacular "tapete" de bactérias que ocupa uma área equivalente à da Grécia e faz lembrar os ecossistemas da Terra há mais de 650 milhões de anos. 

Um mundo de intraterrestres

"Os fundos marinhos constituem, sem dúvida, a última fronteira terrestre", considera Fernando Barriga, director do Museu Nacional de História Natural. Este verdadeiro submundo habitado por "intraterrestres", na feliz expressão de um jornalista da "New Scientist", é, na opinião de Barriga, a "mais promissora linha de investigação no domínio da geobiologia". O seu conhecimento tem não só revolucionado a forma de pensar e entender como funciona a Terra, como poderá ter um impacto significativo em diversos domínios das nossas vidas. "A biosfera profunda é uma fonte de novas moléculas, com aplicações variadas, da cosmética aos fármacos. Alguns organismos que habitam nas fontes hidrotermais submarinas e nas raízes profundas desses sistemas vivem sem problemas rodeados de tóxicos como o arsénio e o mercúrio. Quando compreendermos como o fazem, poderemos criar tratamentos preventivos e/ou curativos para combater esses tóxicos", explica o professor catedrático do Departamento de Geologia da Faculdade de Ciências da Universidade de Lisboa.
A próxima droga contra o cancro, por exemplo, poderá vir do fundo do mar. Os compostos naturais são há muito uma grande fonte de inspiração para as farmacêuticas, mas a maioria das moléculas marinhas estão ainda por explorar, devido aos obstáculos que o processo enfrenta: os investigadores têm que retirar amostras do fundo do mar e analisá-las depois em laboratório. Mas essa realidade está a mudar graças ao recurso à robótica. No Centro de Análises Químicas da Universidade da Califórnia em Santa Cruz, criado em 2007, milhares de compostos são retirados diariamente do fundo do mar e conduzidos por um tubo até robots que depois os analisam. O trabalho permitiu já identificar dois novos compostos: um que mata os parasitas que causam a doença do sono e outro que destrói células do cancro da mama. Em ambos os casos, os investigadores terão ainda que submetê-los a uma bateria de testes antes de os poderem testar em humanos, mas o potencial é inegável.
Para facilitar ainda mais o processo de recolha de amostras do fundo do oceano, uma equipa de bioengenheiros americanos desenvolveu um laboratório biológico submarino, capaz de eliminar o intermediário entre o local da amostra e o laboratório onde esta é analisada. O dispositivo cilíndrico, que lembra uma lata com um metro de altura, consegue testar a presença de proteínas em microrganismos e até realizar testes genéticos, enviando os resultados para terra em apenas hora e meia. Um dos potenciais usos do aparelho - desenvolvido para um instituto de investigação marinha da Califórnia - é a deteção de surtos de algas, que podem obrigar ao fecho de praias e causar prejuízos avultados a economias dependentes do turismo.
Os EUA são também palco de um ambicioso projeto de observação do fundo marinho. Junto à placa tectónica de Juan de Fuca, ao largo da costa oeste do país, está a ganhar forma uma rede sem precedentes de vigilância subaquática. Batizado Neptune, o projeto prevê a monitorização de vulcões, correntes e outras atividades oceânicas ao longo de centenas de quilómetros de fundos marinhos, recorrendo a robôs subaquáticos, três mil quilómetros de fibra óptica colocados entre mil a dois mil metros de profundidade, câmaras e outros aparelhos de gravação. As imagens e sons poderão ser transmitidos em tempo real, através da Internet, para escolas, universidade, laboratórios, museus, aquários e outras instituições. O observatório submarino, descrito como "o maior avanço no estudo dos oceanos em 135 anos", representa um investimento de quase 250 milhões de euros e será uma das pedras basilares de um sistema internacional de observação dos oceanos, a Iniciativa Observatórios Oceânicos (OOI, no acrónimo em inglês). O principal objetivo é a construção de vastas redes de monitores nos oceanos, que permitam que investigadores de todo o mundo tenham uma visão em tempo real de lugares onde antes só podiam ir por curtos períodos de tempo.

O fundo do mar guarda um tesouro incalculável

O fundo do mar pode guardar também a resposta às necessidades energéticas do futuro. A centenas de metros de profundidade, nos abismos dos oceanos, há um tesouro energético de valor incalculável, que muitos cientistas acreditam ser a última grande reserva energética do mundo: os hidratos de metano, estruturas cristalinas sólidas formadas por água e moléculas de gás, semelhantes ao gelo. Trata-se de um recurso abundante, distribuído pelos cinco continentes, que, no seu conjunto, se estima conter pelo menos o dobro da energia de todos os outros combustíveis fósseis do planeta. Só na costa dos EUA, acredita-se que possam existir reservas para, aos padrões de consumo actuais, alimentar toda a nação americana durante os próximos dois milénios.
Apesar do enorme potencial, a exploração deste recurso levanta enormes reservas a muitos cientistas. O metano é um gás de efeito de estufa, cerca de 20 vezes mais potente que o dióxido de carbono, que muitos acreditam estar associado às maiores extinções de vida na Terra. A utilização de um método "impróprio" para o seu aproveitamento poderá, assim, "acentuar o catastrófico aquecimento global", alerta Ryunosuke Kikuchi, investigador japonês do Instituto Politécnico de Coimbra, que tem focado o seu estudo nas estratégias energéticas e nos perigos ambientais do hidrato de metano. Outro obstáculo é o facto de os depósitos se encontrarem dispersos por uma área muito vasta, por vezes a mais de mil metros de profundidade, o que implicaria um investimento enorme para extração, tornando difícil rentabilizá-la. O processo implica ainda grandes riscos para as plataformas existentes na zona, temendo-se que possa até provocar o afundamento de navios.
"A mineração nos fundos marinhos cada vez mais aparece como inescapável, num mundo com milhares de milhões de pessoas que aspiram por uma vida decente da qual, felizmente, estão cada vez mais próximas", sustenta Fernando Barriga. Para além da biosfera profunda e dos hidratos de metano, os fundos marinhos são ricos noutros recursos promissores: "Devem mencionar-se também os hidrocarbonetos convencionais, o petróleo e o gás natural, que cada vez mais se procuram e extraem a maiores profundidades; os nódulos e crostas manganesíferas, ricas em cobalto, níquel, cobre e outros metais; e os jazigos de cobre, zinco, ouro e prata em sulfuretos cuja extracção, a partir de grandes profundidades, se iniciará em breve na Papuásia", acrescenta o director do Museu de História Natural.

Impulso tecnológico

Os novos conhecimentos sobre os oceanos só têm sido possíveis graças aos avanços da tecnologia. Em grande medida, o fundo do mar é mais hostil que o espaço. A pressão é tão violenta que um simples jacto de água poderia cortar um corpo em dois. Para mergulhar a profundidades extremas é, por isso, preciso um submersível, um aparelho capaz de ir onde nem os submarinos convencionais conseguem. Há apenas seis no mundo aptos para descer abaixo dos 4000 metros: o americano Alvin, o avô dos submersíveis, a operar desde 1964 e com uma folha de serviços que inclui a recuperação de uma bomba de hidrogénio para a marinha americana em 1966, a descoberta de fontes hidrotermais nos anos 70 do século passado e a observação do Titanic na década seguinte; o francês Nautile, baptizado em homenagem ao Nautilus de Júlio Verne; os gémeos russos Mir I e Mir II; o japonês Shinkai; e, o mais recente de todos, o chinês Harmony, capaz de chegar aos 7000 metros de profundidade, mais 500 metros que o anterior recordista, o "rival" nipónico. Nenhum deles, contudo, permite repetir o feito de Jacques Piccard e Don Walsh, que, em 1960, conduziram o batíscafo Trieste pela fenda das Marianas, no Pacífico, até ao ponto mais profundo do planeta, 10 911 metros abaixo do nível do mar.
Apesar do extraordinário contributo dos submersíveis para a ciência, sobretudo na descoberta das fontes hidrotermais - primeiro na costa das Ilhas Galápagos, mais tarde em todos os oceanos -, muitos acreditam que a sua era está a chegar ao fim. Como na exploração de planetas distantes, o futuro pertence aos veículos robóticos controlados à distância que permitem a um cientista estar confortavelmente sentado na cabina de um navio e manobrar uma sonda facilmente com recurso a um joystick. E, também como no espaço, o futuro da exploração dos oceanos em submersíveis passará pelo turismo, incluindo pequenos aparelhos inspirados nas "Pulgas do Mar" de Jacques Cousteau, dois minissubmarinos de um lugar capazes de descer até 500 metros de profundidade.
O homem poderá nunca caminhar no fundo do mar como Neil Armstrong caminhou na superfície da Lua, mas há ainda muito oceano para conquistar. No mar salgado, esconde-se a última fronteira da Terra. "Il faut aller voir", já nos lembrava Costeau. É preciso ir ver e descobrir. 

texto publicado na Revista Única do Expresso de 23 de Outubro de 2010

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